terça-feira, 28 de dezembro de 2010

De outro Thiago, ariano, de Mello.

Tua luta te reserva grandes alegrias,
tanto mais belas porque repartidas,
e no começo do verão
resolverás definitivamente
teu grande problema secreto:
mas só se tiveres força
de olhar o sol de frente. 




O verão começou.

domingo, 19 de dezembro de 2010

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Um parêntese ou parêntesis (do grego παρένθεσις, "inserção") é uma palavra, expressão ou frase que se interpõe num texto para adicionar informação, normalmente explicativa, mas não essencial. A característica fundamental dos parênteses é não afetar a estrutura sintática do período em que é inserido.
Por extensão de sentido, são chamados parênteses os sinais tipográficos — "(" [abre] e ")" [fecha] — que delimitam esses elementos aditivos no discurso.
Usam-se ( ) para isolar palavras, locuções ou frases intercaladas no período, com caráter explicativo, as quais são proferidas em tom mais baixo.


Eles são mesmo a melhor parte...

Um Eu Lírico Hipotético, Um Ele Lírico ou, e precisamente, uma Vênus Natal em Peixes

Eu me refiro
a essa ferida
Eu me refiro

domingo, 12 de dezembro de 2010

Não quero começar dizendo que não sei. Não saber já é um pressuposto pra esse esforço de tradução, ou melhor, deformação, em que se parece tomar os sentimentos nas mãos, pegajosos (quase sempre) e espessos (não necessariamente) que eles são, retorcê-los, ou modelá-los, mas fazer deles letras. Escrevo com meus próprios sentimentos, na sua textura, esforço esse que, infelizmente, um dia recebeu o nome de poesia. Infelizmente porque fez com que tudo parecesse tão pretensioso. Assim. 



Mas, no fundo, eu só quero dizer, pegajoso e espesso, um pouco rosado, que não acontece todo dia. Eu só quero dizer tudo isso. 

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Bom mesmo.

Bom mesmo é a gente ajeitar essas coisas dentro da gente, assim...

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Mãe, mãe!, a Lua sorriu pra mim!

- Foi, minha filha?, e o que foi que você fez?
- Eu sorri pr'ela de volta, ora!

H

Letra sorrateira...
Letra silenciosa...
Que ponte.

sábado, 30 de outubro de 2010

Reprodutor (por imitar), nojento (é imundo, veja) e hipotético (é como se nunca tivesse existido, mas poderia ter sido assim)

Sobre como entender tudo.


Costuma-se afirmar por aí (sobretudo nos periódicos vagabundos ou nestas revistas científicas, ou seja, nos periódicos vagabundos) que entender tudo seria algo extremamente difícil - alguns chegam, acreditem, a sugerir (sugerem, pois temem assumir tal posicão publicamente - devem, ao menos, desconfiar do absurdo que representam) que entender tudo seria "impossível", ou (desta palavra gostam bastante) "impraticável". Ora, malgrado o caráter suicida desta corrente, dispomo-nos (mesmo assim, quantos parênteses) a revisitar a teoria do ponto fixo, que, como sabemos, revolucionou o entendimento sobre o tema.

Preconiza esta teoria que se lance o olhar como uma flecha em um local específico (01); que se fixe o olhar (o mesmo olhar tomado como referência no ponto 01) como um prego em um local específico (o mesmo local específico tomado como referência no ponto 01) (02); que se atente às regiões periféricas compreendidas pelo olhar (o mesmo olhar tomado como referência nos pontos 01 e 02) (03); que se sinta cheiro de fotografia (a mesma fotografia mencionada, aliás) (04); que se entenda tudo (05).

Aqueles que sustentam a teoria da impraticabilidade do entender tudo, geralmente, sequer superam o segundo estágio - alguns, pasmem, não cumprem nem mesmo a Fase 01 (eu sei, é ridículo!). Raramente, vislumbram alcançar o quarto passo. Contudo, antes que completem este empreendimento, desconcentram-se, o prego cai. Até mesmo porque, se chegassem ao cheiro de fotografia, entenderiam tudo (apenas em 0,12% dos casos, não se alcança o quinto momento tendo-se realizado a etapa que o antecede).

Estudiosos suspeitam de que tal debilidade possa ser explicada por uma espécie de problema na retina (provocado pelo consumo excessivo de enlatados e pela exposição excessiva a elementos contidos na luz emitida pelos aparelhos de TV, ou seja, pelo consumo excessivo de enlatados) ou por burrice. Tudo bem. A nós, esta explicação pouco interessa. Se por alguma dessas doenças ou por fatores de outra ordem, não é isto o que importa. Fato é que, ao defenderem tais colegas a impraticabilidade do entender tudo, demonstram a plena praticabilidade do não entender nada. Prestam-nos um desserviço, e isto basta. Entenderam? Isto basta.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

O imperativo é o modo verbal que expressa uma ordem, um pedido, uma recomendação.
A expressão "por favor" atribui-lhe um pedido. Ex.: Por favor, traga-me um café. Sem a palavra "por favor", atribui-lhe uma ordem. Ex.: Traga-me um café.
Exemplos:
Pare! (ordem - 3ª pessoa) / Pára! (ordem - 2ª pessoa)
Vá buscar sua irmã na escola! (ordem - 3ª pessoa) / Vai buscar tua irmã na escola! (ordem - 2ª pessoa)
Não existe a primeira pessoa do singular do modo imperativo. Os pronomes ficam depois dos verbos conjugados.
Temos imperativo negativo e imperativo afirmativo. No imperativo negativo, devemos colocar na frente a palavra "não" (não + verbo + pronome). Os pronomes "ele" e "eles" serão substituídos por "você" e "vocês" respectivamente.









Querer, gostar, amar. 
Três verbos sem imperativo.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Varrem as flores. As flores caem, eles varrem as flores! As flores, por acaso, sujam? As flores, por acaso, atrapalham os transeuntes, cheiram mal? atacam? Flores carnívoras, flores... Varridas, as flores parecem bolar tristes, até serem irremediavelmente recolhidas: pá. Uma beleza sequestrada, um absurdo silenciosamente gritante, e vice-versa, se elas pudessem gritar, pediriam ajuda como lindas jovens pedem quando são raptadas. Raptam lindas jovens com frequência ali, perto daquela árvore, as lindas jovens ainda mais indefesas que as lindas jovens, nem sequer gritam. É como se tudo tivesse mesmo que ser opaco, quando lhe roubam a cor assim. Porque não é necessário varrer as flores dali. E nem as flores lhes são necessárias. Então, o que não é necessário pode e deve ser removido, mesmo que não seja necessário fazê-lo, fazem funcionar assim. A pá e o desnecessário desprezo pelo desnecessário (; o fim da pá e a necessidade do desnecessário). As flores sequer podem deitar ali, descansar naquela grama, em paz, quando caem do céu (árvore), maduras e exuberantes. Sequer. Não se contentam em não admirá-las, ignorá-las – o que já as magoa bastante – mas não; não se contentam com a indiferença. Não as toleram. Precisam removê-las, escondê-las, mesmo destruí-las, para que ninguém lhes diga o quanto aquele cheiro vermelho borra o mundo pálido – quando eles ficariam com aquela cara meio cética, meio prática, de quem, na verdade, não entende, mas não sabem, e é por isso que não querem. Mais confortável é essa preguiça genocida que faz varrer, maldita preguiça genocida vassoura. Juntas naquela lata, elas conhecem o destino que arrastou suas antepassadas. O homem de azul – sabemos, ele não é o mentor de toda esta atrocidade –, seu instrumento fatal, a torre que nos recolhe, ninguém escapa – mentira, você sabe, algumas companheiras pegam carona no vento, jogam-se, pulam, viram cambalhotas no ar e conseguem fugir, delas não ouvimos mais falar, não se vê mais uma pétala: chega, você está falando demais.
Sair de casa assim, cuspido por esta casa, não se trata de uma escolha. Trata-se de ralo. Isso seria imitação demais, do argentino, em infinitivo (parece haver relação entre o infinito e infinitivo, algo a ser desprezado e, portanto, investigado). Mas foi o que me ocorreu, ralo, e me custa acreditar que algo que escrevamos não seja repetição, mera, seja de algo lido (em letras, note-se), seja uma tradução de algo que se encontrasse em outra forma, lido (também), gelatinosa ou não. A questão passa a ser, portanto, simplesmente de níveis, o que faz com que não importe: imitação de algo ainda não traduzido (em letras, observe-se), imitação do que já foi traduzido por outro babaca que pensou a mesma coisa, só que antes, questão de primazia. Imita-se o traduzido, portanto, nesta retórica vadia, cuspido por esta casa, após meu próprio (?) suicídio: devo confessar que não sabia, que não tinha certeza do que viria, o que me torna mais uma vez culpado por minha morte, o que me torna mais uma vez culpado, o que me torna mais uma vez, o que me torna mais uma, o que me torna, o que me, o que, o. Fui cuspido à rua, a casa, agora cuspo a rua, o cuspe, e a rua? cospe em quem? em todos, em forma de poças, esgoto, urina. A pretexto de fumar um cigarro. Uma história inventada, e agora o que resta entre as mãos é uma história inventada a partir dela, a história inventada, não há limites. Por mais que se saiba, eu sei, não é correto, não é correto cuspir ou atirar lixo às ruas, eu sei, ambientalmente correto, mesmo que ela poças, esgoto, urina, mas eu não podia mais carregar aquilo em mim, me desculpe, estava sujo e pesado demais, aquela mulher em mim. Correto, rígido, as mãos dela, eu tinha que tirar dos meus braços, as mãos dela e aquelas marcas, sujas, roxas, vermelhas, um vômito, quem não sabe como é. Eu tinha que tomar aquele banho (o pior eram as palavras) aquela caminhada banho cuspe que o silêncio da madrugada me oferecia, e procurar o medo, como forma de estar vivo. O medo e a enorme linha que separa a vida da morte, que costura, a vida e a morte. Percebo só agora que havia um ralo nas ruas mais escuras, nos lugares mais remotos, de morcegos e gatos negros, nos cigarros, lugares mais remotos como aquele homem, que dormia na calçada da loja de colchões, quando deveria ser o contrário (dormir no colchão da loja de calçadas). Havia, neles, ralo, a casa, o cuspe, o ralo; eu, a morte, o medo, ressureição: fui cuspido, traguei; fui tragado; cuspi. Enquanto me perseguiam as folhas, os grilos, os copos plásticos, na ventania; as calçadas e os colchões, o esquecimento dela. Não se trata de uma escolha: ralo. Foi pra isso que morri?

sábado, 9 de outubro de 2010

: às vezes eu sonho tanto, fico confuso. Acordo com aquele gosto de sonho na boca, sem ser o pão, se fosse era bom. Também? A primeira impressão é a que fica, quando a última é a que mais marca? Eu acho todo dia que acordo do jeito que sonho quis. Eu sei. E que, sonho, sonho é só instrumento, corda de alguém fazer a gente ser de um jeito que ele quis que o sonho quisesse a gente; naquele dia, mesmo que a gente não lembre, que se a gente não lembra, também. As coisas que tu vive é que te fazem ser, as que vão te moldando. Sonho é vivido também. Se alguém briga, e tu fica puto, se alguém beija, e tu fica bem. Tudo isso dependendo de auto-controles, capacidade de auto-molde, tenho trabalhado nisso. Também? Mas acho que os sonhos, deve não adiantar, eles vêm de tão antes, matéria tão primeira que manda-eles, que mandam até nessa capacidade. De. No sonho, colocam substância em a gente, mais ou menos. Dão a cor o tom do dia, no mínimo, de a-cor-dar, entre o daqui pra frente até o próximo pesadelo, pesadelo também, pesadelo é um sonho. Sendo o pão só o pão, sem recheio. Mas sonho também, porque prevê, previve e prevê, e prefaz e pressente, que preé. Sonho também, então. Hoje eu sonhei muita coisa. que 'tava no Rio, que ia na praia, que comia demais, que nunc'acabava. O próprio sonho parecia aquela comida, sem ser o pão, e eu sempre quero voltar a domir pra continuar sonhando, e fico pensando se sono não é vontade de sonhar?, já pensei, já pensou?: sono é cansaço, de realidade, é precisar de mundo outro, de mundo(,) de outro. Nosso organismo. Mas o que é físico, eu acho, tem uma coisa atrás. Por trás, eu não sei que fonte, já odiei a metafísica, mas hoje. Hoje, insônia é aprisionamento em mundo imundo. Jaula de vida real, desprezo de ficção. Fique louco, fique são. Só se tu te prendeu ao contrário, quando te soltaram nessa prisão. Eu já conhecia prisioneiro de liberdade e de poesia, mas de sonho, eu não. Acho que prisão ao contrário é pior do que. Bem pior do que. Cara, acorda, a gente é só sonho, então.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Jogo do diálogo: quem quer e quem não quer.

O Governo tem que fazer. O Governo tem a obrigação de garantir políticas públicas às populações indígenas. O Governo promete. O Governo não faz. O Governo faz um acordo no sentido de garantir estruturas locais de atendimento às populações indígenas. O Governo mente. O Governo não faz. O Governo retira as estruturas locais de atendimento às populações indígenas. O Governo faz. O Governo mente. O Governo não faz. O Governo não discute com os índios nem os consulta quanto a esta medida. O Governo impõe. O Governo faz. O Governo promete, não faz, impõe, retira, mente: faz. O Governo faz.

Os índios têm direito a políticas públicas. Os índios têm direito a um sistema de atendimento que assegure políticas públicas. Os índios não têm acesso a políticas públicas. Os índios não têm acesso a um sistema de atendimento que assegure políticas públicas. Os índios têm. Os índios não têm. Os índios lutam. Os índios têm direito a participar da elaboração das políticas públicas para os índios. Os índios, os índios. Os índios não participam. Os índios não podem participar. Os índios têm direito. Os índios não podem. Os índios lutam. Os índios querem participar. Os índios não podem. Os índios devem. Os índios podem. Os índios conseguem promessas de que terão estruturas locais de atendimento. Os índios são enganados. Os índios não têm estruturas locais de atendimento. Os índios não têm. Os índios não têm, não podem, querem, lutam, podem, devem, conseguem, são enganados: querem. Lutam.

A elite. A elite quer as terras dos índios. A elite não se conforma, a elite acha pouco. A elite diz que não existem mais índios, que são vagabundos. A elite cria. A elite mente. A elite não se importa. A elite se importa. A elite se importa com a elite. A elite, a elite. A elite pressiona. A elite afirma. A elite diz. A elite participa. A elite não participa. A elite manda. A elite tem. A elite quer. A elite pode. A elite consegue. A elite engana. A elite quer, não se conforma, diz, pressiona, afirma, diz, manda, desmanda, tem, quer, pode e consegue: engana. A elite engana: a elite ri.

Nós. E nós?

O Governo faz. Os índios lutam. A elite ri. Nós.

O jogo consiste em responder quem quer e quem não quer.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A aliança é o compromisso, a responsabilidade, a disciplina. A aliança é Saturno, a aliança são seus anéis. Não sou eu quem digo isso. Aliás, digo, e escrevo também, mas não sou eu quem invento. Isto já está dito por aí, por muitos, em muitos lugares.

Saturno simboliza exatamente este comprometimento que se assume. Saturno é karma. É aquilo que precisa ser trabalhado, desenvolvido, a partir do esforço, do sacrifício, da dor; Saturno é dever. Mas não só.

O anel de tucum é saturnino. Porque é peso, é dor, é luta. É responsabilidade. É compromisso, e é peso, sim. Não há como negar: é, sim, tudo isso: também. E é paixão. É também paixão, porque Saturno é também o que se alcança. É também o fruto colhido a partir do sofrido reconhecimento dos próprios limites, e a partir, também, do rasgar desta membrana, do eclodir desta casca. O anel se rompe. Novos anéis aparecem. Sem fim. Como tetos. Como quem sobe andar por andar destruindo o concreto quando o sente sobre a cabeça, em seu papel, limitando. A expansão exige o reconhecimento de que somos pequenos, de que somos menores do que gostaríamos ou do que aquilo que pode(ría)mos ser. Para crescer, é necessário saber que há para onde crescer, que não somos tão grandes assim: formigas. É isto: condição.

O anel de tucum, pequeno, leve, é, na verdade, tonelada. De sonhos, de tarefas; de poesia, de medo; de utopia, de dor. É tudo um grande parto que se opera em nós mesmos, é quando nos damos à luz. É preciso estar grávido; e fecundar-se... Imagine-se nascendo de si: as maiores transformações, as revoluções - nossas e do mundo - não vêm sem sangue, não surgem sem que a pele seja rasgada, sem que se ouça um grito. A flor está ali. Ao seu lado, o espinho. 

Espinhos da palmeira da Amazônia também, li em algum lugar. Palmeira de onde vem o anel, palmeira chamada tucum. É de uma palmeira cheia de espinhos que vem a beleza do anel. Como é difícil perceber a proximidade entre o que nós estamos tão acostumados a distanciar. É, tudo, uma coisa só. 

Meu anel de tucum rompeu-se. Não é o primeiro. Seria sinal de descaso meu? Seria um aviso para que eu parasse? Retrato de uma falsa aliança? Talvez otimista, penso que devo procurar pelo próximo anel, que - farei de tudo - hei de rasgar.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

- Ferreira... Ferreira.

- Trinc, trinc, trinc.

Assim. Ela dialogava com o portão. Sempre. Sempre à noite. Ela não faltava a esse desencontro, era pontual com Ferreira ou com o portão?: como se um dia ele fosse aparecer. Não o portão:

- Ferreira, desgraçado... O portão estava lá, ela estava presa, embora fosse ela quem estivesse do lado de fora. Qual é o lado de fora? O mundo era uma prisão e talvez sua única salvação se encontrasse naquela jaula, jaula que a libertaria. Me soltem desse mundo, me prendam... O portão de ferro, portão de Ferreira, construção esta que se deu por puro acaso, afinal, não fui eu quem inventei esse nome. Foi ela. E o ferro já estava lá, também não foi inventado. Ninguém inventa nada, Ferreira já é, por si só e por mais ninguém, um nome trancado, um nome portão, um nome sujo e enferrujado como um portão cinza e velho, com suas grades em espirais que imitam castelos. Como se pudessem.

- Ferreira? À uma e meia da manhã, será que Ferreira era surdo? Será que Ferreira tinha o sono mais profundo...? O que Ferreira teria feito tanto para nunca acordar? Teria nunca dormido por quanto? Tempo. Teria sido um guardião de um precioso tesouro? Que babaca. Guarda-noturno, não, um flanelinha que, por sorte, sobreviveu a muito crack, a tanta polícia? Das duas formas, um virtuoso. A questão é que o sono de Ferreira devia ser tranquilo, a ponto de pouco ou nada lhe conseguir perturbar. O que poderia dever à Dona que Gritava Presa no Mundo? Se devesse, acordaria; mas não devia. Acordar. Não devia. No outro dia, noite,

- Ferreira! Nem o portão se importava em lhe responder. Mais. O portão velho de Ferreira sentia-se cansado, via-se em desfazimento, não, não tinha mais idade para ser chacoalhado daquela forma. Se pudesse, ele mesmo acordaria

- Ferreira, sua praga... E colocaria fim. Ela sofria muito, sim. Pensa você que é fácil vir todo dia chamar este cão, não ser atendida, chegar até este limite de meu mundo, este portão-fronteira, Ferreira, que separa o que faz sentido em minha vida de todo o resto que não? Pensa que é fácil viver solta numa prisão e não poder, mais, estar encarcerada em minha liberdade toda, liberdade toda de ser mulher, liberdade toda de ser feliz, de ser triste, sofrer, sofrer tudo que eu quiser, o tanto que eu quiser, este máximo que eu quiser e quero, seu portão imundo!, eu tenho raiva de você que me solta!, me solta ferrugem entre os dedos!, isto depois sangra!, quem sabe tétano, quem sabe você pensa que é feliz ser grande e gorda?!, esses cabelos enrolados, me apoiando neste portão para que não caia de dor e de vergonha! Aqui mesmo! Você pensa que eu não escuto a minha própria voz no sussurro do meu suposto travesseiro!:,

- Ferreira, seu filho duma vaca!!! Ah... Você pensa que não?! Que não acordo assim?! Hei de acordar Ferreira...  Assim!!! Você pensa que eu não odeio isso?! Você pensa que eu não odeio?! Você pensa que tudo que eu tenho em mim não passa de um ódio, aquele amor, mas endurecido, endurecido como caramelo?!, podre, você pensa que eu não sou feita disso, seu viado, seu bosta, sua bicha?! Você pensa que é fácil simplesmente pular esse muro que me separa dois mundos?! Você pensa que essa casa fétida!, que esses quartinhos sebosos onde moram tantos bêbados não é um castelo?!, veja este portão! ... A quem não me dirijo mais. Ah... Você pensa que Ferreira não sonha comigo (toda noite), enquanto eu grito para ele, por ele? Eu sei... Você pensa que isso não é um jogo ensaiado, uma trágica sedução, em que ele se regojiza – eu sempre quis usar essa palavra e confundir -, se masturba em seus sonhos, sonha em sua masturbação com minha voz que parece linda, sereia, o canto de uma anta no cio... Você não pensa?!

- ... FERREIRA!!!!!

Ferreira dormia. Os vizinhos observavam e riam. Quem observava e ria sabia que ela não fazia nada para que fosse ouvida; que ela repetia o nome diante do portão velho, noite após noite, sem qualquer novo truque para que sua voz passasse a despertar Ferreira, onde ele estivesse; quem observava e ria sabia que ela não conseguiria ser ouvida; sabia que ela não queria ser ouvida, que ela precisava de Ferreira assim: dormindo. Porque ela vivia o sonho de Ferreira, no esquecimento. Acordar, atravessar o portão, seria destruir a si mesma.

Ferreira dormia. Os vizinhos observavam e riam. Ela não se observava. Entre aqueles que observavam e riam, alguns até pensavam em escrever sobre aquilo, algum. Como se fosse possível.