quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Vela.

As sombras sabem. As sombras são cúmplices.

Sei que, quando essa vela acabar, vai incendiar aquela palha e finalmente pôr isto aqui abaixo. Sei que, quando ela acabar.

Não olho para ela. O fogo pede meu olhar, que eu nego. Não devo respeito nenhum a quem pode me destruir.

A sombra da cadeira observa tudo, flamejante. As sombras sabem. As sombras são cúmplices.

Vejo como o pavio queima, como a chama lhe espanca, numa batalha em que, apesar de árdua, já se sabe quem será o vencedor. Não é fácil para um homem derrotar um muro. O fim da vela é uma flor iluminada, é uma mesa de centro bonita de presépio.

A flor de fogo sacode. Avisa desesperada ou excita-se sob a proximidade do fim, a eternidade: nosso amor era um pavio. O pavio não deixa rastro, o pavio nunca existiu; o pó.

Deixo o cachimbo, ainda com fumo, que acendia com o fogo da vela. Reparo nas sombras que me traíram, omitindo-se de confirmar a minha versão dos fatos, o que quis dizer confirmar a sua; a sua versão filha da puta e mentirosa dos fatos. Os seus fatos.

Minha mão se movimenta independente de mim: falta muito pouco para nada. Tento fazer como daquela vez, sentir o meu corpo em ligação com uma parte do que eu espero. Estou num dia pouco inspirado. Talvez devesse ter escolhido um dia melhor para, finalmente, descer. (Velas parecem com crianças, que parecem com a vida: quando se está sempre observando, nunca se percebem as mudanças.)

Passo um a um por meus pensamentos. Retiro à força suas mãos da minha cabeça, de que querem se apropriar; sigo meu caminho. Essa obstinação não me vem todo dia. Pouco inspirado, mas obstinado, fiz a opção certa, terra. Só espero que a vela ainda me permita pensar um pouco mais, sobre ela.

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Corretossexual.

Reto.
É reto.
Ereto:
Eretossexual.
É retossexual.

Reto.
É reto.
Co-reto:
Corretossexual.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Correspondência - A um companheiro.

Cara, bom receber essas notícias. Notícias, uma porra, são muito mais que notícias, notícias são frias, porque são mortas. Enfim, a questão é que pensei que poderia dizer algumas palavras sobre ele. Ele, o sentimento. Movido por ele. Então, não mando notícias.

Não mando notícias e poderia dizer que tem parecido pra mim que ele não está só em mim, nem só em ti, apesar de que não são muitos os que o percebem ou que falam ou escrevem sobre ele com profundidade, violência e delicadeza, e apesar de que isso não pode nos roubar a singularidade da nossa angústia, da nossa dor. Porque se nos tirarem até isso - não, não podem.

Poderia dizer, então, que ele é algo muito maior, ele que tem nos inquietado, ao mesmo tempo em que nos paralisa - aprendemos que o paralisado não está quieto, está paralisado e, muitas vezes, sempre, pulsa. Isso porque sei, isso porque hoje tu não foi o primeiro que me escreveu sobre peso, cansaço, fugir. Sobre esse incêndio que quer negar e explodir. Não: esse incêndio que nega e explode.

E o que aterroriza, enfurece, seduz e puxa é esse conjunto; é a constatação de que, em todos nós, além de tudo que ele já é, ele guarda uma espera. É como se ele não fosse, e nós também não. Estamos prestes. Esperando ou sendo esperados, desesperados, parece que essa é a forma através da qual nos guardamos, e aguardamos. Por.

Eu não sei, meu velho, essa é a minha certeza óbvia.
A incerteza, que é tudo o que realmente importa, é de que estamos numa corda bamba, em que é preciso lutar e se entregar. Lutar, para manter a mínima estrutura, para não se permitir tragar por completo; mas é preciso também deixar-se levar. O conceito gramsciano de crise parece que se aplica também pra cada um. Talvez resistir intransigentemente - algo a que já estamos acostumados - neste momento, signifique conservar - algo a que não estamos acostumados.

Um grande abraço, companheiro.

sábado, 26 de novembro de 2011

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

O Procedimento

O procedimento aqui descrito, de modo geral, não é realizado com frequência nos dias de hoje. Isso equivale a dizer que são poucos aqueles que o realizam, apesar de certo crescimento recente do número de indivíduos que têm buscado tal técnica, por um motivo ou por outro. Mesmo diante dos riscos (é verdade, há certos riscos) que o procedimento oferece, cientistas, pesquisadores e especialistas e autoridades renomadas no assunto sustentam que não é esta a questão. Em verdade, efeitos fisiológicos causados pelo consumo excessivo de enlatados e pela exposição excessiva a determinados elementos contidos na luz emitida pelos aparelhos de TV (ou seja, o consumo excessivo de enlatados) seriam os principais fatores capazes de explicar os limites de sua disseminação. Sem mais, passemos à descrição do procedimento, em todas suas etapas.

Existe um pedaço de metal (chamado “trinco”) junto ao pedaço de madeira (chamado “porta”) situado próximo àquela parede envelhecida (chamada “parede envelhecida”). O primeiro passo consiste em girá-lo com uma das mãos (se necessário, com as duas, no entanto, não é necessário aqui empregar grande esforço, sendo importante que se reserve energia suficiente para os passos seguintes – em geral, utilizam-se as duas mãos quando uma delas encontra-se demasiadamente oleosa, o que esperamos que não seja o caso), puxá-lo e ultrapassar o virtual retângulo (usualmente, trata-se de um retângulo, mas não deixe de ultrapassá-lo caso se trate de outro polígono ou de polígono algum), no qual, antes, estava situado o pedaço de madeira (chamado “porta”, o mesmo mencionado na primeira linha do presente parágrafo).

Ultrapassada a Etapa 01, descrita acima, passemos ao desenvolvimento da segunda etapa. A segunda etapa consiste, de início, em uma caminhada despretensiosa, com o objetivo apenas de aquecer  o corpo. As caminhadas, como se sabe, são bastante benéficas para o organismo humano, sobretudo as despretensiosas, por serem desprovidas de pretensão. Após a caminhada despretensiosa com o objetivo apenas de aquecer o corpo, o que não chega a constituir propriamente uma pretensão, localize, em seu entorno, algumas injustiças, de simples visualização (pode ser uma daquelas injustiças já bastante banalizadas, encontradas perto de casa, como um mendigo comendo lixo, um morador de rua dormindo sob a fachada de uma loja de colchões, ou uma criança limpando pára-brisas. Aliás, é verdade que o procedimento também pode ser realizado em outras modalidades, como, por exemplo, a modalidade “sem sair de casa”, bastante confortável, em que o próprio indivíduo que realiza o procedimento ou a mulher que assume todas as tarefas domésticas sozinha costumam configurar exemplos amplamente acessíveis de injustiça para a realização deste segundo passo. Mas a modalidade “sem sair de casa” pode ser abordada em sua especificidade n’outra oportunidade, sigamos).

Chegamos, enfim, à terceira etapa. Exige-se, aqui, grande concentração, uma vez que se faz necessário que o participante adote uma postura que, muitas vezes, difere daquela adotada ordinariamente – seja no trabalho, na escola, no cabaré ou na loja de calçados. O procedimento aqui, finalmente, refina-se, revela seu verdadeiro teor. Por isso, é natural que nem sempre esta fase seja superada em uma primeira investida. Em verdade, os dados coletados apontam que, em 0,12% dos casos, os indivíduos envolvidos não conseguem superar o primeiro passo (provavelmente por suas mãos estarem absurdamente oleosas); já em 6,3% das situações, o segundo passo não é vencido (pelo fato de alguns participantes não estarem devidamente familiarizados com o termo injustiça); e, em 17,8% das experiências relatadas, o obstáculo reside nesta etapa, a terceira. Portanto, atenção. Concentre-se na explicação que lhe será oferecida, observe o significado de cada termo, pois nenhum deles está aqui por acaso – cada palavra provém de um aprofundado estudo, de uma larga experiência acumulada, de tentativas-e-erros, da doação de milhares de homens e mulheres que dedicaram sua vida a este assunto. Recomendamos, então, que se sigam as orientações rigorosamente, isto será decisivo.

A terceira etapa é assim: consiste em perguntar porquê.





(texto meio velho, meio besta, meio inspirado demais em cortázar, sem que isso tenha a ver com ser meio besta, mas tendo a ver com ser meio velho, sem que isso signifique um abandono da leitura de cortázar, pelo contrário, mas se tratando simplesmente de uma ligação cronológica entre esses eventos. eventos?)

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Você não tem sentido.
Você não tem sentido.
Você não tem sentido.

Era isso que ele dizia? Era. Assim, com essas várias caras que tu fez? Urrum. Assim, uma pra cada vez. Tu entendeu? Eu entendi, do meu jeito. É, entendi do meu jeito, então, sim, entendi. Mas não achei tão bom, não. Tu relacionou com as caras, na tua forma de entender? Relacionei. Relacionou as frases com as caras? Relacionei. E até lembrei daquela música que tu cantou uma vez, só uma vez, que tu disse que fez e nunca mostrou, nunca tinha mostrado e nunca mais mostrou, pra ninguém, que tinha uma coisa de sen-ti, de separar a sílaba e separar o sentimento e separar a pessoa , a pessoa que está sen, senti. Eu entendi, sim, que cada cara tinha um sentido, um sentido, um sentido, e que cada sentido tinha um sentido, um sentido, um sentido, me lembrou inclusive uma sacada, se não me engano do Quintana, Quintana me lembra fruta, sempre, acho que por causa de quitanda, que palavra rechonchudinha, quitanda, uma sacada que vi por aí, solta, quem faz sentido é soldado, devia ter mais alguma coisa, mas o fundamental era isso. Hum. ... Se a ideia for mesmo que pra cada frase existe um sentido, eu ainda colocaria uma quarta vez, um quarto sentido. Era? Qual? Por quê? Porque sim. Porque, ó, ainda dava pra trabalhar a falsa diferenciação entre você e eu. Essa divisão aparente, forjada, que parte o nós, que mutila o todo. Eu achava que isso já tava aí. Era? Como? Como se uma dessas frases já ocupasse esse espaço? Era. Pra mim, não. Pra mim, são outros três, outros três que estão aí, a não-diferenciação só se for escondida por detrás. E quais tu acha que estão aí? Todos os outros, numa gradação, como algo que acumula, e que cresce. Hum... Três. ... E se tivesse um quinto, já seriam cinco sentidos, né? É, e com um sexto, E com um sexto, eu vejo seis sentidos, Haha, Essa piada besta, Desse filme Besta, que eu não vi, Besta, besta, Demais.

sábado, 5 de novembro de 2011

Ando cada vez menos certo - mais errado e mais incerto - sobre meu paradeiro. Sei que essas pessoas que eu encontro, com quem converso, não são reais; sei que elas não passam de eu falando para mim. Como este homem, este falso homem-eu, que insiste, "é preciso saber entrar, e é preciso saber sair". Insiste e, ao insistir, dilui-se; mostra sua verdadeira face: névoa: névoa feita de mim. Ele me é, nessa forma que eu encontrei, clandestinamente, de me sacodir, de me fazer ver, de me dar um tapa na cara para que eu pare de me tapear. Através dele, sou eu quem grito. Sou eu quem sei que o passo precisa ser largo, a ponto de vôo, a ponto de alto, a ponto nenhum. Percebo, sobretudo, nesse ônibus, como sou passageiro, a ponto de eterno. Como este homem; como o vento; como eu: Urano atua em mim.
Uma formiga                      Uma formiga                      Uma formiga                                            
                                    trombando na outra                           
__no varal_________________no varal________________no varal___

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Tio Fransquim,

que guardava um pedaço de pão no bolso, que preferia comer o pedaço de pão na rua, escorado, antes de entrar em casa. Que só dizia "como vai ela?", e se calava, diante dos sobrinhos. Era o jeito dele.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Seu Cabral.

Seu Cabral apareceu, para salvar o dia. Me descobriu ali sentado, descobriu a minha vontade de que o dia fosse salvo, descobriu tudo isso, o que significa que não tinha nada a ver com o navegador homônimo que chegou para nos roubar. Eustaco?, Cabral, algo parecido, pediu que lhe chamasse apenas de Cabral porque o outro nome era, era o quê?, não era difícil, era sofisticado, algo como isso. Pediu licença, baixinho, sentou para palestrar, o disco de Nelson Gonçalves na mão. Me mostrou. Eu disse que o disco era muito bom. Pensei em falar do meu pai, que também gosta muito da voz do homem; pensei em falar de discos, vinis, da vitrola que havia arrumado; pensei em ouvir, e optei por ouvir. Me perguntou de onde eu vinha, onde morava; primeiro, se eu era "acadêmico"; e me chamou de doutor. Insistia, eu ia ser um grande doutor, um grande doutor, e que eu estava vencendo na vida, vencendo na vida, vencendo... Eu respondia, como de costume, que nós, que nós, e que doutor se faz vivendo. E ele concordava-mas-insistia, como num "é, mas você, né... tem anel no dedo, tá estudaaano...", os olhos dele eram baixos. Era muito curvo, e gostava de falar com a cabeça inclinada, o olhar lançado por cima dos óculos. Eu o olhava fixamente, e tive a sensação de que ele não esperava tanta atenção. Nisso, ele se dividiu: parecia querer conversar, parecia não querer demorar. Mas não resistiu quando falei de novo em Nelson Gonçalves, elogiando as músicas do disco e cantando um pedaço de "Atiraste uma pedra": ele, já de pé, desandou a cantar; até que: "difícil no amor ééé saber renunciar - e é mesmo, viu? o mais difícil no amor é saber renunciar, é o mais difícil..."

Quando acabou, desafiou-se a adivinhar minha idade. Me pediu para não dizer, e acertou, sob uma margem de erro de alguns meses; eu era novo, eu ia ser, mesmo, um grande doutor. Apertou a minha mão pela última vez, desejou tudo de bom para mim e para minha família, pela última vez; disse que eu era uma boa pessoa e que ele também estava vencendo. Pela primeira vez. Foi embora. Ainda interrompeu o percurso quando uma criança lhe chamou, pedindo que lhe trouxesse a bola que havia chutado para longe. Palestrou com o menino, fez dois ou três carinhos em sua cabeça cacheada e partiu. Outra criança, que brincava sozinha, agarrou a bola; mas o menino, com raiva, lhe tomou o brinquedo de volta.