sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Jogo do diálogo: quem quer e quem não quer.

O Governo tem que fazer. O Governo tem a obrigação de garantir políticas públicas às populações indígenas. O Governo promete. O Governo não faz. O Governo faz um acordo no sentido de garantir estruturas locais de atendimento às populações indígenas. O Governo mente. O Governo não faz. O Governo retira as estruturas locais de atendimento às populações indígenas. O Governo faz. O Governo mente. O Governo não faz. O Governo não discute com os índios nem os consulta quanto a esta medida. O Governo impõe. O Governo faz. O Governo promete, não faz, impõe, retira, mente: faz. O Governo faz.

Os índios têm direito a políticas públicas. Os índios têm direito a um sistema de atendimento que assegure políticas públicas. Os índios não têm acesso a políticas públicas. Os índios não têm acesso a um sistema de atendimento que assegure políticas públicas. Os índios têm. Os índios não têm. Os índios lutam. Os índios têm direito a participar da elaboração das políticas públicas para os índios. Os índios, os índios. Os índios não participam. Os índios não podem participar. Os índios têm direito. Os índios não podem. Os índios lutam. Os índios querem participar. Os índios não podem. Os índios devem. Os índios podem. Os índios conseguem promessas de que terão estruturas locais de atendimento. Os índios são enganados. Os índios não têm estruturas locais de atendimento. Os índios não têm. Os índios não têm, não podem, querem, lutam, podem, devem, conseguem, são enganados: querem. Lutam.

A elite. A elite quer as terras dos índios. A elite não se conforma, a elite acha pouco. A elite diz que não existem mais índios, que são vagabundos. A elite cria. A elite mente. A elite não se importa. A elite se importa. A elite se importa com a elite. A elite, a elite. A elite pressiona. A elite afirma. A elite diz. A elite participa. A elite não participa. A elite manda. A elite tem. A elite quer. A elite pode. A elite consegue. A elite engana. A elite quer, não se conforma, diz, pressiona, afirma, diz, manda, desmanda, tem, quer, pode e consegue: engana. A elite engana: a elite ri.

Nós. E nós?

O Governo faz. Os índios lutam. A elite ri. Nós.

O jogo consiste em responder quem quer e quem não quer.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A aliança é o compromisso, a responsabilidade, a disciplina. A aliança é Saturno, a aliança são seus anéis. Não sou eu quem digo isso. Aliás, digo, e escrevo também, mas não sou eu quem invento. Isto já está dito por aí, por muitos, em muitos lugares.

Saturno simboliza exatamente este comprometimento que se assume. Saturno é karma. É aquilo que precisa ser trabalhado, desenvolvido, a partir do esforço, do sacrifício, da dor; Saturno é dever. Mas não só.

O anel de tucum é saturnino. Porque é peso, é dor, é luta. É responsabilidade. É compromisso, e é peso, sim. Não há como negar: é, sim, tudo isso: também. E é paixão. É também paixão, porque Saturno é também o que se alcança. É também o fruto colhido a partir do sofrido reconhecimento dos próprios limites, e a partir, também, do rasgar desta membrana, do eclodir desta casca. O anel se rompe. Novos anéis aparecem. Sem fim. Como tetos. Como quem sobe andar por andar destruindo o concreto quando o sente sobre a cabeça, em seu papel, limitando. A expansão exige o reconhecimento de que somos pequenos, de que somos menores do que gostaríamos ou do que aquilo que pode(ría)mos ser. Para crescer, é necessário saber que há para onde crescer, que não somos tão grandes assim: formigas. É isto: condição.

O anel de tucum, pequeno, leve, é, na verdade, tonelada. De sonhos, de tarefas; de poesia, de medo; de utopia, de dor. É tudo um grande parto que se opera em nós mesmos, é quando nos damos à luz. É preciso estar grávido; e fecundar-se... Imagine-se nascendo de si: as maiores transformações, as revoluções - nossas e do mundo - não vêm sem sangue, não surgem sem que a pele seja rasgada, sem que se ouça um grito. A flor está ali. Ao seu lado, o espinho. 

Espinhos da palmeira da Amazônia também, li em algum lugar. Palmeira de onde vem o anel, palmeira chamada tucum. É de uma palmeira cheia de espinhos que vem a beleza do anel. Como é difícil perceber a proximidade entre o que nós estamos tão acostumados a distanciar. É, tudo, uma coisa só. 

Meu anel de tucum rompeu-se. Não é o primeiro. Seria sinal de descaso meu? Seria um aviso para que eu parasse? Retrato de uma falsa aliança? Talvez otimista, penso que devo procurar pelo próximo anel, que - farei de tudo - hei de rasgar.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

- Ferreira... Ferreira.

- Trinc, trinc, trinc.

Assim. Ela dialogava com o portão. Sempre. Sempre à noite. Ela não faltava a esse desencontro, era pontual com Ferreira ou com o portão?: como se um dia ele fosse aparecer. Não o portão:

- Ferreira, desgraçado... O portão estava lá, ela estava presa, embora fosse ela quem estivesse do lado de fora. Qual é o lado de fora? O mundo era uma prisão e talvez sua única salvação se encontrasse naquela jaula, jaula que a libertaria. Me soltem desse mundo, me prendam... O portão de ferro, portão de Ferreira, construção esta que se deu por puro acaso, afinal, não fui eu quem inventei esse nome. Foi ela. E o ferro já estava lá, também não foi inventado. Ninguém inventa nada, Ferreira já é, por si só e por mais ninguém, um nome trancado, um nome portão, um nome sujo e enferrujado como um portão cinza e velho, com suas grades em espirais que imitam castelos. Como se pudessem.

- Ferreira? À uma e meia da manhã, será que Ferreira era surdo? Será que Ferreira tinha o sono mais profundo...? O que Ferreira teria feito tanto para nunca acordar? Teria nunca dormido por quanto? Tempo. Teria sido um guardião de um precioso tesouro? Que babaca. Guarda-noturno, não, um flanelinha que, por sorte, sobreviveu a muito crack, a tanta polícia? Das duas formas, um virtuoso. A questão é que o sono de Ferreira devia ser tranquilo, a ponto de pouco ou nada lhe conseguir perturbar. O que poderia dever à Dona que Gritava Presa no Mundo? Se devesse, acordaria; mas não devia. Acordar. Não devia. No outro dia, noite,

- Ferreira! Nem o portão se importava em lhe responder. Mais. O portão velho de Ferreira sentia-se cansado, via-se em desfazimento, não, não tinha mais idade para ser chacoalhado daquela forma. Se pudesse, ele mesmo acordaria

- Ferreira, sua praga... E colocaria fim. Ela sofria muito, sim. Pensa você que é fácil vir todo dia chamar este cão, não ser atendida, chegar até este limite de meu mundo, este portão-fronteira, Ferreira, que separa o que faz sentido em minha vida de todo o resto que não? Pensa que é fácil viver solta numa prisão e não poder, mais, estar encarcerada em minha liberdade toda, liberdade toda de ser mulher, liberdade toda de ser feliz, de ser triste, sofrer, sofrer tudo que eu quiser, o tanto que eu quiser, este máximo que eu quiser e quero, seu portão imundo!, eu tenho raiva de você que me solta!, me solta ferrugem entre os dedos!, isto depois sangra!, quem sabe tétano, quem sabe você pensa que é feliz ser grande e gorda?!, esses cabelos enrolados, me apoiando neste portão para que não caia de dor e de vergonha! Aqui mesmo! Você pensa que eu não escuto a minha própria voz no sussurro do meu suposto travesseiro!:,

- Ferreira, seu filho duma vaca!!! Ah... Você pensa que não?! Que não acordo assim?! Hei de acordar Ferreira...  Assim!!! Você pensa que eu não odeio isso?! Você pensa que eu não odeio?! Você pensa que tudo que eu tenho em mim não passa de um ódio, aquele amor, mas endurecido, endurecido como caramelo?!, podre, você pensa que eu não sou feita disso, seu viado, seu bosta, sua bicha?! Você pensa que é fácil simplesmente pular esse muro que me separa dois mundos?! Você pensa que essa casa fétida!, que esses quartinhos sebosos onde moram tantos bêbados não é um castelo?!, veja este portão! ... A quem não me dirijo mais. Ah... Você pensa que Ferreira não sonha comigo (toda noite), enquanto eu grito para ele, por ele? Eu sei... Você pensa que isso não é um jogo ensaiado, uma trágica sedução, em que ele se regojiza – eu sempre quis usar essa palavra e confundir -, se masturba em seus sonhos, sonha em sua masturbação com minha voz que parece linda, sereia, o canto de uma anta no cio... Você não pensa?!

- ... FERREIRA!!!!!

Ferreira dormia. Os vizinhos observavam e riam. Quem observava e ria sabia que ela não fazia nada para que fosse ouvida; que ela repetia o nome diante do portão velho, noite após noite, sem qualquer novo truque para que sua voz passasse a despertar Ferreira, onde ele estivesse; quem observava e ria sabia que ela não conseguiria ser ouvida; sabia que ela não queria ser ouvida, que ela precisava de Ferreira assim: dormindo. Porque ela vivia o sonho de Ferreira, no esquecimento. Acordar, atravessar o portão, seria destruir a si mesma.

Ferreira dormia. Os vizinhos observavam e riam. Ela não se observava. Entre aqueles que observavam e riam, alguns até pensavam em escrever sobre aquilo, algum. Como se fosse possível.