quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Seu Cabral.

Seu Cabral apareceu, para salvar o dia. Me descobriu ali sentado, descobriu a minha vontade de que o dia fosse salvo, descobriu tudo isso, o que significa que não tinha nada a ver com o navegador homônimo que chegou para nos roubar. Eustaco?, Cabral, algo parecido, pediu que lhe chamasse apenas de Cabral porque o outro nome era, era o quê?, não era difícil, era sofisticado, algo como isso. Pediu licença, baixinho, sentou para palestrar, o disco de Nelson Gonçalves na mão. Me mostrou. Eu disse que o disco era muito bom. Pensei em falar do meu pai, que também gosta muito da voz do homem; pensei em falar de discos, vinis, da vitrola que havia arrumado; pensei em ouvir, e optei por ouvir. Me perguntou de onde eu vinha, onde morava; primeiro, se eu era "acadêmico"; e me chamou de doutor. Insistia, eu ia ser um grande doutor, um grande doutor, e que eu estava vencendo na vida, vencendo na vida, vencendo... Eu respondia, como de costume, que nós, que nós, e que doutor se faz vivendo. E ele concordava-mas-insistia, como num "é, mas você, né... tem anel no dedo, tá estudaaano...", os olhos dele eram baixos. Era muito curvo, e gostava de falar com a cabeça inclinada, o olhar lançado por cima dos óculos. Eu o olhava fixamente, e tive a sensação de que ele não esperava tanta atenção. Nisso, ele se dividiu: parecia querer conversar, parecia não querer demorar. Mas não resistiu quando falei de novo em Nelson Gonçalves, elogiando as músicas do disco e cantando um pedaço de "Atiraste uma pedra": ele, já de pé, desandou a cantar; até que: "difícil no amor ééé saber renunciar - e é mesmo, viu? o mais difícil no amor é saber renunciar, é o mais difícil..."

Quando acabou, desafiou-se a adivinhar minha idade. Me pediu para não dizer, e acertou, sob uma margem de erro de alguns meses; eu era novo, eu ia ser, mesmo, um grande doutor. Apertou a minha mão pela última vez, desejou tudo de bom para mim e para minha família, pela última vez; disse que eu era uma boa pessoa e que ele também estava vencendo. Pela primeira vez. Foi embora. Ainda interrompeu o percurso quando uma criança lhe chamou, pedindo que lhe trouxesse a bola que havia chutado para longe. Palestrou com o menino, fez dois ou três carinhos em sua cabeça cacheada e partiu. Outra criança, que brincava sozinha, agarrou a bola; mas o menino, com raiva, lhe tomou o brinquedo de volta.

Nenhum comentário:

Postar um comentário