sábado, 18 de junho de 2011

Começo destelhando, pra lhe tirar qualquer capacidade de reação; destelhando, mesmo que eu não acabe, o tempo (Cronos e o outro, que não é clima) acaba, com o serviço e com ela. Essa é a parte mais difícil, ter que subir, engatinhar por sobre, por sobre ela inteira, chega a causar certo remorso, suposto arrependimento antecipado, mas depois que se termina pode-se finalmente partir para arrancar todas as portas. Poucos conhecem o prazer de arrancar portas, só superável pelo prazer de janelas, arrancar janelas. A sensação de liberdade é infinita quando se completam esses trabalhos; depois que (primeiro, delicadamente) se desparafusa uma a uma as portas, eu prefiro fazer assim, desparafuso um a um, uma a uma, com toda a calma que costumo não ter, o que também demonstra o caráter terapêutico da atividade, e, quando estão todas já soltas, como frágeis seres que aguardam o abate ou crianças que aguardam os pais para buscá-las na escola, o que no fundo é a mesma coisa, quando isso, quando tudo está pronto, inclusive as janelas, apenas decepa-se uma a uma, uma a uma, uma a uma, aquele som majestoso irá ecoar por diversas vezes, como se o ouvido bebesse alguma coisa gostosa, gelada, líquida, é óbvio se se bebe, mas densa, líquida mas densa, recolhendo-se em seguida os cadáveres. É como uma limpeza. O ar circula, há uma plena comunhão com o entorno, sem aquelas bocas que fechavam e abriam quando se queria, não se pode ter determinadas opções, certas coisas precisam nos ser proibidas, assim nos proibimos de certas coisas. Nos proibimos, e não foi a primeira vez, de portas e janelas, para quê, para você se esconder no banheiro?, cague diante de nós. Não me venha com essa autonomia auto-preservativa autoautoauto, cagão, cague para todo mundo ver. O piso não consegue ser melhor do que as portas, muito menos do que as janelas, mas consegue ser melhor do que as telhas; a sensação é parecida, na verdade, mas como o trabalho é menor, torna-se mais prazeroso, torna-se ponto médio de prazer entre portas e telhas, as janelas são demais, não entram nessa comparação, seria uma enorme, enorme nem consegue qualificar o, tamanho nem consegue qualificar essa, injustiça nem consegue qualificar a, janela. Vejo aquelas pessoas dizerem que estão sem chão, estou sem chão, duvido que já tenham realmente sentido encravar no pé o espinho que fica embaixo do piso bonitinho de cerâmica que lhes são chão, duvido que já tenham sentido esse sangue que eu sinto escorrer agora, duvido, duvido delas. Não sabem o que perdem ao não encravarem essa estaca no meio de dois quadrados, aqui são tacos, marrons com traços amarelos, que me lembram aquela avó; não sabem, encravo, firme; marreta, até que o buraco aberto seja enorme e horrível o suficiente – para abrir a terra e para ninguém mais usar esse taco horrível, antes marrom e amarelo e bonito; é quando eu sinto a terra respirar, ela bafora no meu pé e é quando lateja a raiva ainda maior, sim, ela consegue, do próximo taco imundo que devo marretar e destruir, raiva que às vezes me faz entrar um pedaço de taco no olho, e eu entendo a sua vingança e não repreendo ou tenho dó, simplesmente entendo e, em respeito, continuo com toda a agressividade para que se intensifique e se torne mais quente e molhado o bafo de terra no pé; faço isso por respeito, porque sempre julguei que, quando se respeita o inimigo, utilizam-se contra ele todas as forças; do contrário, não. Chego a pensar que talvez o piso me ofereça mais prazer do que portas, mas não chego a pensar nas janelas, já nelas não penso, seria o que eu já disse que seria, aquela coisa sem nome mas que eu sinto, penso, acho, que eu sei que sei e não preciso provar pra ninguém através dessa oralidade estúpida, através da verbalização que quer prestar contas, eu só presto contas a mim e ao bafo da terra porque ele me agrada cada vez mais, chega a fazer cócegas, chega a fazer carinho, chega a; quando acabo, quando acabo finalmente os tacos, gosto de observar como fica aquilo tudo, aquele todo, um enorme pulmão desamordaçado por mim, pelo que encravo e pelo que marreto, parece com minha origem, parece ser daí que venho para cá justamente com a missão, o intuito e o prazer de reencontrar, acredito profundamente nisso, que nossa missão é irônica e escrotamente sair da origem e sair do passado, para encontrar a origem e encontrar o passado, como se tivéssemos uma mãe que não conhecemos, vimos, mas éramos muito pequenos, é uma busca intuitiva, em algum lugar, como se o propósito de tudo fosse exatamente esse, essa a razão do jogo, encontrar essa maldita mãe que se perdeu de nós em algum lugar e agora vagar por isso tudo, caminhar nesses espinhos e nessa terra, destruir  telhas, tacos e janelas, só pra encontrar essa mulher louca que ousou nos parir. Você pode até achar isso canceriano demais, ou freudiano, demais, mas eu, eu vou concordar com você, realmente não há defesa diante disso, nem a pata de um caranguejo violento e vermelho protegendo seus filhos, nem isso, eu vou concordar com você e não posso deixar de estranhar esse aprendizado por assimilação que é meu e que não me deixa separar do que não é meu, enquanto entendo perfeitamente isso; a essa altura eu já tirei os móveis, os poucos, quase nenhum, móveis que estavam já na sala, concentrados, e a fogueira já vai alta. Esse momento é sempre importante, porque encontrar com o fogo em mim é sempre importante, é isso também uma mãe, uma carangueja, uma volta à origem, sobretudo quando estala e queima e eu sinto esse calor me encharcar o rosto como se o derretese ou derretesse o corpo d’uma vela, ou como se minha cabeça fosse a chama que arde e o resto do corpo, esse, sim, branco, fino, aos poucos e finalmente derretesse e na verdade a chama sempre pareceu com uma cabeça, um cabelo, dourado, ao vento, balançando, e os braços dentro daquele, daquela roupa toda branca, como uma roupa de padre, que tem nome mas eu esqueço, se eu esqueço tem nome?, um nome objetivo, para além de mim mesmo e da minha relação com essa roupa de padre?, tem nome:, roupa de padre, é tudo muito parecido com o Sol. Eu me sinto tomando banho de fogo e só uma sanidade abstrata e genérica ainda contraditoriamente mantida em meio a esse momento de existência quase plena é que me impede de não apenas sentir, mas de tomar, banho, mas se eu sinto tomar banho eu não tomo?, enfim, chega dessas auto-perguntas que após a primeira ou a segunda, dificilmente eu sei após qual, me deixam extremamente, nem enjoado nem enojado, repulsa, foi então que eu parti pro fim. Pras paredes. Talvez para a maioria das pessoas a parede fosse ou deveria ser ou e deveria ser o que há de mais divertido; exatamente talvez por isso eu não veja nenhuma graça. Sempre que são elas, tento observá-las, mas elas sempre me pareceram pouco vivas, só uma vez consegui ver numa delas, em várias delas naquele dia, uma expressividade, um sentimento, um coração palpitando, o que me motivou gravemente a marretá-la com toda a força que não costumo ter, desenvolver essa relação, batia batia como se não fosse possível cansar, e entendia aquilo perfeitamente, eu tenho entendido muitas coisas perfeitamente, eu entendo muitas coisas perfeitamente quando estou demolindo essa casa que sou eu, escombros.

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