domingo, 3 de abril de 2011

Aquele sentado à cabeceira, lia sobre o carma, o dharma (o dharma, não, o dharma foi ela quem mencionou), o perespírito, em voz alta. Como de costume, quando fumávamos. Ao fundo da leitura, a formiga dançava sobre o azulejo. A criança, brincava com os instumentos da cozinha, exercitava seu gosto virginiano. A mulher, dividia sua atenção entre o primeiro e a terceira; entre observações que destacavam pontos da leitura e repetições do nome de sua filha. Eu. Eu, de certa forma, também. Atentava para o debruçado, diante de mim, que lia com o corpo inteiro, enquanto levemente espiava a menina. Por cuidado, e curiosidade intrínseca, por carma e por crianças. Mas me ocupava também em reparar na mulher, e esperar; por aquilo, que, só eu sabia?, estava por vir.


A formiga continuava a dançar. Parecia estar bêbada, contagiada, pelo quê?, havia encontrado companhia. A formiga continuava a dançar, então, agora acompanhada pela formiga menor. A mulher observou, como é interessante isso do carma, pronunciando em seguida, o nome. Ou pesado, talvez tenha sido pesado. Aquele sentado à cabeceira concordou rapidamente, com os olhos e um pouco de boca. A criança cuidava, naturalmente, embora já sonolenta, de continuar gastando a energia de seu corpo e exigindo olhares. Aquele sentado à cabeceira, lia sobre o carma, o dharma (o dharma, não, foi ela), o perespírito, em voz alta. Eu. Eu observava a todos, sem mover a pupila, a partir de um ponto fixo. E isso porque sabia: esperava. Apenas quem sabe espera?

Chegavam mais formigas, era um grande baile agora. A mulher, a mãe, o dharma é outra coisa, são como as ações, não? Também tão interessante – nome. À criança, cabia explorar o balde em que estavam as maiores colheres, o espremedor de frutas e o rolo do macarrão, levando à boca instrumentos imundos, os quais haviam sido delicadamente tocados pelas formigas que agora dançavam. Era extremamente adorável, embora aquela não fosse uma boa hora. Para levar a boca instrumentos imundos. Boa hora para. Aquele sentado à cabeceira, lia sobre o carma, o dharma (o dharma, não), o perespírito, em voz alta. Deslizou entre os dentes um rápido comentário sobre a sintonia entre dois espíritos, dois médiuns, de tempos diferentes; tornou a ler. Boa hora para que. Eu observava, um a um e a todos, esperava e, agora, punha-me a pensar: seria eu, mesmo, histérico? Aquele trecho dizia respeito ao cigarro. A mulher me fez uma pergunta, eu não entendi, pedi que ela repetisse: . Devia estar se referindo à menina, se eu for histérico, onde estará o sentido da vida? Se não no outro em mim? Sou. Perguntei, em voz alta, esbarrando os sons, o que seria a verdade de que Jesus falava; fui seguido por um vago, pífio, turvo som de flauta doce, ensaiava cambalhotas no ar. Não sou católico. Sou histérico.

As formigas eram inúmeras, abríam um imenso rombo sobre o azulejo. Formavam uma massa orgânica, de uma só cor. Me parece que era marrom, como a blusa da mãe, feita de formigas, não lembro bem. Tive a impressão de que ela me olhava. Talvez curiosidade, talvez uma olhar perdido, talvez uma tenra expectativa de que eu, mais uma vez, tentasse distrair educativamente a menina – lhe ensinando que, ao invés de brincar de desorganizar, poderia nos ajudar a organizar brincando. Obsessivo, não, histérico, tentava alimentar seu ímpeto de servir, ser útil. Funcionou, em parte. À criança, cabia desorganizar, organizar, aprender, e levar a cabo uma série de pausas – havia cadência, musicalidade –, uma para cada vez que seu nome fosse lançado, até que parasse, fumaça, de ecoar. Então, tornava a. Aquele sentado à cabeceira lia sobre o carma, o dhar., o perespírito, em voz alta. Eu, sobretudo, esperava. (Eu não era mais ali. Já me sentia passado, já me sabia memória; estava pra onde o tempo havia escorrido mais.) 

As formigas, trabalhavam. Segui para o quintal, levantei a cabeça o máximo que pude, quis procurar o céu, de modo que ele pudesse ver meu rosto. Vejo a sombra sobre o chão, desenhada a partir da porta. Trata-se da mulher, da mãe e da criança, além da filha; aproximam-se. Aquele sentado à cabeceira, lia sobre o carma... Lia sobre o carma, o perespírito, em voz alta. Catamos a Lua, e, depois de revirar, chegamos à conclusão de que ela só apareceria mais tarde. O Sol tem maior comprometimento com horários. Eu, apesar de histérico, não tinha nada a dizer, e não estava preocupado. Ela, parecia querer ter; não tinha, não para mim, ali. Quis me mover, fui até a pia escura, aquela que fica do lado de fora, cheia de larvas e lodo. Lavei a boca, as mãos, enfiei o rosto numa toalha branca, mas preta, e, por algum motivo, ou exatamente por nenhum, me senti melhor. A criança me chamou de “nenem”; eu disse que não, e sorri, o suficiente.

Retornamos. À mesa. Alguns instantes desabaram quietos. A mulher mãe resolveu mais uma vez pôr a criança para dormir, sob protestos que vazavam pelos olhos e inquietavam as mãos. As formigas haviam escancarado um vistoso portal, próximo à pia, em meio aos azulejos, em espirais. A mesa estava suja, muito suja. Eu, além de observar e esperar, agora percebia. Devolvi a cadeira ao seu lugar, vazia; me retirei.

Aquele sentado à cabeceira, lia sobre o carma, o dharma (sim, o dharma), o perespírito, em voz alta. Como de costume, quando fumávamos.


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