domingo, 4 de dezembro de 2011

Almir.

Nunca deixe a faca sobre a mesa, era o que eu sempre pensava, após lavar o que havia restado na cozinha, normalmente entre as três e as quatro horas da manhã. O que eu sempre pensava, o que eu sempre temia, temer é quase igual a pensar; é igual.

Eu lavo a madrugada, eu a purifico. Promovo esse ritual sob a sombra do sono deles, quando acordarem perceberão. Gosto da limpeza e dessa invisibilidade servil, dessa negação da pretensão, que coisa mais cristã, Cristo era virginiano? Um virginiano que nasceu de madrugada. Não, ele fazia milagres pra todo mundo ver. Enquanto eles sonham e descansam, sou eu quem cuido.

Me dei conta, em meio aos garfos, de que o silêncio estava agitado. Não era um silêncio verdadeiro, entende?, o alumínio roçava sobre o silêncio, rangia, deixava a madrugada mais suja. Por toda a parte, eu sentia a gordura e, na minha mão oleosa, eu ouvia o rangir, agora somado aos gritos, que eu julgava já ter calado, um a um. Um a um, um a um, um a um. Foi por isso que costurei, me agradam os mais diversos trabalhos manuais. Funcionam sempre como uma limpeza, a purificação, mesmo que incompleta, sempre incompleta. 

O rangir se tornava mais alto. Já não era possível distinguir entre ele e os gritos, por mais que eu esfregasse. Fundiam-se. Do mesmo modo eu me sentia mergulhado em gordura, parecia partir das mãos para o corpo todo, circulava em mim. Nunca houvera madrugada tão suja. Pela fresta da janela, eu via a massa espessa de nuvens, e a minha sensação de impregnação se totalizava.

Lavei pela última vez as mãos, guardei todos os utensílios nas gavetas correspondentes. Quando ouvi aquele riso contido ao pé da porta, tive certeza de que haviam finalmente encontrado o pai e os irmãos, e de que já estavam prestes a entrar. Tive tempo apenas para esticar o braço, alcançando a mesa, e me posicionar junto à parede. Nunca foi do meu interesse que aquilo durasse para sempre, era tudo tão inevitável quanto uma espera. Teria que sujar ainda mais aquela madrugada, a fim de poder, definitivamente, deixá-la limpa. Agora entendia porque, em meio aos gritos e ao som cortante do alumínio, me chegou o aviso sobre a faca. Nunca deixe a faca sobre a mesa, era o que eu sempre pensava.

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