domingo, 15 de janeiro de 2012

Sobre nossa relação com as portas.

Não é à toa que cada porta tem sua fisionomia - mesmo que a maioria delas guarde traços comuns ao de uma velha senhora, se atentarmos ao trinco. A crença (sim, uma crença seca, um pressuposto sem qualquer base racional) de que as portas representam o que há de mais inanimado, ou menos animado, crença essa presente em diversos ditos populares, não é apenas falsa, mas também mentirosa, enganadora e equivocada e má. O que está em curso é um processo - que carrega uma intencionalidade - de desumanização sistemática das portas. Quando uma pessoa reivindica um tratamento justo legitimando a barbárie para com as portas - como se elas fossem feitas de madeira ou algo que o valha - não se trata de outra coisa. Com as portas, vale tudo. E elas sofrem: quando há brigas, seja em casa ou nóutro ambiente, em qualquer tumulto, são arrombadas ou lançadas violentamente contra seu ponto de repouso. Isso quando jamais foi comprovado que uma porta tenha cometido qualquer ato violento (ou de qualquer outra natureza) contra um homem, uma mulher, ou mesmo contra animais de estimação, de rebanho ou silvestres (sejam eles mamíferos, aves, répteis, anfíbios ou peixes). A polêmica com relação ao caso da Porta Satânica demonstra-se, hoje, finalmente, vazia por completo. Nunca foi comprovada sua participação no assassinato das crianças polonesas; contudo, como se sabe, a porta foi sumariamente cerrada e seus pedaços incendiados, sem que lhe fosse concedido qualquer direito à defesa. 

O que parecemos não conseguir enxergar é o encantamento que existe por trás das portas, além de sua utilidade e a forma servil e honesta que assumem diante de nossas necessidades e de nossos desejos. Sempre se argumenta que as portas rebelam-se com frequência (é dessa forma que os homens percebem o enguiçamento, o emperramento, o engolimento de pedaços de chave); não conseguimos nos dar conta de que isso é apenas uma resposta - e sempre é esta a interpretação correta - das portas às nossas faltas para com elas. Temos trabalhado em projetos que buscam substituir as portas por outros instrumentos, outros mecanismos. E todos esses empreendimentos falharam! Será isso à toa? Somos incapazes de realizar a auto-crítica?

Precisamos aprender a nos relacionar com nossas irmãs. Não insultá-las, agredí-las - já conhecemos sua sensibilidade; compreender a forma como cada indivíduo-porta gosta de ser tratado - cada porta tem preferências quanto ao modo de ser aberta, fechada, batida, enfim, tocada de modo geral. São medidas tão pequenas e simples quanto necessárias e urgentes. Mas isso tudo só será possível a partir do momento em que nos abrirmos para reconhecer que são as portas que nos revelam os novos ambientes, que nos permitem transitar, conhecer, aprofundar nossas experiências. Quando nos dermos conta, de uma vez por todas, que sem as portas, estaríamos todos presos... aliás, não. Se não houvesse portas, não haveria nada, estaríamos todos livres, é verdade. Hum, é verdade.

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